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Os três paradoxos da democracia

            Por Bruno Lorencini*

Em meados da década de 1990, o mundo observava verdadeira revolução democrática. Novas “democracias” surgiam em Estados europeus recém-emancipados dos vínculos da União Soviética e em Estados latino-americanos recém-libertos de regimes autocráticos militares. As aspas no termo “democracias”, contudo, se justificam pelo fato de que buscar a democracia é algo diferente de alcançá-la e, especialmente, mantê-la. Isso porque os Estados necessariamente convivem com o que Larry Diamond, em festejado artigo, chamou de paradoxos internos da democracia (DIAMOND, 1990). Tais paradoxos são ainda mais presentes em períodos de transição democrática, como é o caso dos Estados da Terceira Onda, relembrando, aqui, a já clássica obra de Huntington.

            Somente quando o Estado encontra a fórmula para conviver com tais paradoxos, de maneira estável e permanente, é que ele efetivamente poderá ser considerado uma democracia. Os três paradoxos identificados por Diamond são: (i) conflito x consenso; (ii) representatividade x governabilidade; e (iii) consenso x efetividade.

            Em relação ao primeiro paradoxo, a fórmula democrática é baseada na competição eleitoral, ou seja, no conflito de ideias e propostas. Não obstante, tal conflito não pode ser tão intenso a ponto de polarizar a sociedade, inviabilizando o debate e a convivência social. No dizer de Diamond, “democracia requer conflito, mas não tanto” (p. 49).

            O segundo paradoxo se estabelece no fato de que se, por um lado, a democracia impede a concentração de poder e demanda a representação plural da sociedade por intermédio de mandatários eleitos, por outro lado, o governo eleito não pode ser “refém” de interesses de grupos de eleitores.

            O terceiro paradoxo é o de que a democracia parte da premissa de que o poder político deve ser legitimado pelo povo, mas a confiança e consenso popular somente se estabilizam no momento em que os regimes democráticos conseguem entregar resultados efetivos no campo econômico e social.

            A dificuldade em lidar com tais paradoxos é um dos fatores que pode explicar o “desencantamento” que atinge o mundo democrático como um todo, em especial os Estados que iniciaram sua transição para a democracia nos anos 1990. É o registro de pesquisa recente do Centre for the Future of Democracy (2020), da Universidade de Cambridge, que trouxe como conclusão central o fato de que, desde 1990, a parcela da população mundial insatisfeita com a democracia cresceu mais de 10 pontos percentuais, alcançando o maior nível de insatisfação global desde o início da série de pesquisas em 1995. 

            O caso brasileiro ilustra bem a dificuldade em lidar com os paradoxos democráticos, especialmente nos dias atuais. Vejamos os sintomas atuais de nossa democracia.  

            Sintoma 1. Polarização e o primeiro paradoxo

            A polarização concerne, diretamente, ao paradoxo conflito vs consenso. Embora o Brasil tenha mantido a institucionalidade da competição eleitoral desde a redemocratização, para o que foi especialmente importante o bom grau de confiabilidade e idoneidade dos pleitos, a disputa política tem extravasado limites democráticos, passando a dialogar com retrocessos autocráticos.

            Sintoma 2. Disputa entre poderes e o segundo paradoxo

            O segundo paradoxo também é uma constante na história do Brasil redemocratizado. O fenômeno do presidencialismo de coalizão, expressão bem cunhada por Abranches (2018), demonstra a crise de governabilidade permanente no Estado brasileiro. Embora seja saudável, em termos democráticos, a exigência de que o Presidente negocie com o parlamento a condução do país, é perceptível, pela análise das políticas públicas vigentes em cada setor econômico e social, a existência de capturas e privilégios para certos grupos e segmentos.

            Sintoma 3. Ascensão do populismo e das soluções fáceis

             O fenômeno do populismo é de elevada complexidade e divergência em seus contornos, mas há algumas características que lhe são flagrantes, como o personalismo do poder e o discurso antissistêmico de seus representantes. A divisão do mundo entre bons e maus, corruptos e anticorruptos, entre outros maniqueísmos, é uma característica crescente no debate político, especialmente em redes sociais, o que somente favorece a plataforma populista e a proposição de soluções fáceis e ilusórias para problemas complexos. A democracia não tem conseguido entregar resultados concretos para muitas dificuldades humanas, espaço que o populista aproveita para explorar em clara relação de parasitismo.

            Esta breve exposição de paradoxos demonstra que o projeto democrático jamais será perfeito e acabado. Necessário que aceitemos suas fraquezas para, a partir disso, concluir que seus benefícios justificam a manutenção do caminho de consolidação da democracia.

Referências

ABRANCHES, Sérgio. Presidencialismo de Coalizão. Raízes e evolução do modelo politico brasileiro. Companhia das Letras, São Paulo, 2018.

BENNETT INSTITUTE FOR PUBLIC POLICY. The Global Satisfaction With Democracy Report 2020. University of Cambridge, 2020. Disponível em https://www.bennettinstitute.cam.ac.uk/publications/global-satisfaction-democracy-report-2020/

DIAMOND, Larry. Journal of Democracy. Vol. 1, N. 3. Summer 1990.

HUTTINGTON, Samuel. P. The Third Wave. Democratization in the Late Twentieth Century. University of Oklahoma, 1993.


  • Professor de Ciência Política e Direito Constitucional (Mackenzie e Unialfa). Doutor em Direito do Estado pela Universidade São Paulo e pela Universidade de Salamanca.

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