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O Brasil é uma democracia consolidada?

Por Bruno Lorencini

            O Brasil enfrenta algum risco de retrocesso democrático? A questão suscita dúvidas e receios, especialmente em momentos de crise política e institucional. Interessante analisar as respostas que a ciência política tenta trazer.  

            O Brasil está entre os Estados que integram o movimento que Huntington denominou de terceira onda democrática[1]. Trata-se de um universo político, cultural e social heterogêneo de países – com representantes da América do Sul, África e Leste Europeu – que, entre as décadas de 1970 a 1990, iniciaram processo de transição da fórmula autoritária para a democrática. Em todos eles, a dúvida sobre a possibilidade de retrocesso é corrente, o que levou a investigações tentando mensurar quando tal risco é mais presente.

            Entre as teorias oferecidas pela ciência política, parece-me uma das mais coerentes a de Diamond, que afirma que a consolidação da democracia somente ocorre quando ela ganha profunda e ampla legitimação. No que consiste essa legitimação? Na crença arraigada nos principais atores políticos de que a democracia é o único jogo na cidade (“the only game in town”)[2].

            Diamond identifica três camadas sociais em que a legitimação ocorre: massa popular, intermediários e elites. A consolidação democrática depende do compromisso das três camadas com a democracia, ou seja, que nenhuma considere o autoritarismo como uma opção. Por evidente, a legitimação não depende da inexistência de atores ou grupos contrários à democracia. Isso seria utópico, ante o pluralismo natural a qualquer sociedade, especialmente as democráticas. O importante é que não exista grupo relevante, em termos quantitativos ou qualitativos, que se oponha à fórmula democrática.   

            No caso das massas, pesquisa recente do Latin American Public Opinion Project (Vanderbilt University) demonstra que, em relação a 2017, aumentou o percentual de brasileiros que acredita ser a democracia a melhor forma de governo (passou de 52% para 60% em 2019)[3]. Curioso, também, que é alto o percentual de pessoas não satisfeitas com o funcionamento da democracia no Brasil (58%), sendo consideráveis os índices de rejeição às instituições democráticas, como eleições (33%), Congresso (31%) e Partidos Políticos (13%).

             Esses dados revelam um aspecto interessante do posicionamento das massas no Brasil. Preserva-se a confiança no modelo de jogo político, desconfiando-se dos seus jogadores. A interpretação otimista que se pode extrair desse cenário é que o sentimento popular em relação à democracia não é o de substituí-la, mas sim o de aperfeiçoá-la. A interpretação pessimista seria o de que o descontentamento com os jogadores pode representar um caminho para abandonar o jogo.

            Em relação aos intermediários, trata-se do campo dos partidos políticos, dos grupos de interesses e de organizações civis. Neste segmento, o Brasil também traz particularidades que merecem atenção. O quadro partidário é extremamente fragmentado, com trinta e três partidos registados no Tribunal Superior Eleitoral[4], inexistindo, no Congresso Nacional, bloco partidário capaz de assegurar maioria nas votações. Soma-se a isso a existência de grupos de interesse com reconhecida força no parlamento – bancadas evangélica, ruralista, entre outras – e a cada vez mais presente atuação de organizações civis na política, demonstrada por movimentos como o Renova Brasil, Acredito e Fundação Lehman.

            Nota-se, assim, que no grupo de intermediários o Brasil apresenta elevada pluralidade, qualitativa e quantitativa, de players que surgiram e estão habituados à lógica democrática. Nos seus trinta e poucos anos de vida, a Constituição Federal foi capaz de fornecer condições institucionais para que os intermediários se fortalecessem, conforme se observa, por exemplo, do estruturado sistema de financiamento direto e indireto assegurado aos partidos políticos. É possível concluir, assim, que os intermediários ganharam vida e cresceram dentro da democracia, razão pela qual, entre esse grupo, plataformas antidemocráticas soam autofágicas.

            Entre as elites mora o perigo. Como bem destaca Diamond, no nível das elites é mais fácil observar “sinais de fragilidade, instabilidade e não consolidação”[5] da democracia. Refiro-me, aqui, tanto à elite política quanto a econômica. É exatamente na interface entre poder político e poder econômico que a democracia oferece o maior flanco às forças retrógadas. Isso por duas razões essenciais.

            A primeira é que na democracia a relação entre elites política e econômica é camuflada por estruturas burocráticas. Paradoxalmente, neste aspecto as autocracias são mais transparentes, pois o ditador não tem maiores receios em revelar seus financiadores. Nas democracias, considerando-se que partimos da ficção de que o poder político é do povo e independente do poder econômico, a relação entre os poderes se estabelece dentro da burocracia do financiamento político-eleitoral. Por vezes, tal relação somente será revelada a partir de escândalos como o Mensalão e a Lava-Jato.

            A segunda é que as elites compõem o grupo com maior acesso e controle sobre a política. O poder de decisão está nas mãos da elite política e o dinheiro nas da elite econômica. A conjugação de tais recursos permite que tal classe utilize o Estado como instrumento para concretizar interesses individuais, ainda que transvestindo suas ações em argumentos de interesse público. Não é necessário ir muito longe para exemplificar: basta imaginar o leque de subsídios fiscais concedidos sem que seja possível visualizar qual o interesse público tutelado.  

            A camada das elites é a que maior dificuldade oferece para a análise do compromisso democrático, especialmente no Brasil. A primeira dificuldade que emerge é, exatamente, definir quem compõe esse grupo. Por evidente, os representantes eleitos, tanto no Executivo quanto no Legislativo, fazem parte desse universo, bem como empresários que abertamente declaram seu apoio ou oposição ao governo.  Há, contudo, amplo universo que integra aquilo que Bobbio chamou de poder invisível[6] na democracia, isto é, indivíduos e grupos com ampla influência no poder político e que funcionam às escuras. Escândalos políticos recentes têm revelado a forte atuação do poder invisível no Brasil.

            Os critérios estabelecidos por Diamond devem ser quantitativa e qualitativamente investigados para conclusões mais completas. Não obstante, os riscos de retrocesso autoritários parecem menores nas camadas da massa popular e dos intermediários. As vozes de oposição aberta à democracia, nessas camadas, são minoritárias e se situam em quadro marginal ao funcionamento das instituições. O risco maior está na camada das elites, não propriamente por estar comprovada sua adesão ao autoritarismo, mas sim pela ausência de dados e elementos que demonstrem a efetividade de seu compromisso democrático.

            Evidentemente, comportamentos são elementos que permitem a avaliação qualitativa do compromisso democrático de um membro específico da elite. Por exemplo, os discursos e manifestações do Presidente da República são dados importantes para análise. Entretanto, por mais relevante que seja o agente, posicionamentos isolados, e por vezes dúbios, não satisfazem os critérios de Diamond para a análise de risco democrático. Necessário saber o quanto o posicionamento do Presidente vocaliza entendimento presente e relevante na camada da elite política. Sobre esse ponto, ainda não há conclusão segura.

Referências

BOBBIO, Norberto. O Futuro da Democracia. São Paulo: Paz e Terra, 2006.

DIAMOND, Larry. Developing Democracy. Baltimore: The Johns Hopkins University Press, 1999.

FOLHA DE SÃO PAULO. Confiança na democracia sobe, mas insatisfação com seu funcionamento é de 58%. Acesso em https://www1.folha.uol.com.br/poder/2019/06/confianca-na-democracia-sobe-mas-insatisfacao-com-seu-funcionamento-e-de-58.shtml

HUNTINGTON, Samuel P. The Third Wave. Democratization in the Late Twentieth Century. Oklahoma: University of Oklahoma Press, 1993.

LATIN AMERICAN PUBLIC OPINION PROJECT. Americas Barometer 2016/2017. Acesso em https://www.vanderbilt.edu/lapop/ab2016.php


[1] HUNTINGTON, Samuel P. The Third Wave: Democratization in the Late Twentieth Century.

[2] DIAMOND, Larry. Developing Democracy.

[3] Folha de São Paulo. Acesso em https://www1.folha.uol.com.br/poder/2019/06/confianca-na-democracia-sobe-mas-insatisfacao-com-seu-funcionamento-e-de-58.shtml, em 10/06/2020.

[4] Dados do Tribunal Superior Eleitoral (www.tse.jus.br, acesso em 10/06/2020)

[5] Diamond, Developing Democracy., p. 67

[6] BOBBIO, Norberto. O Futuro da Democracia.

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